Por Trás dos Quadrinhos (Vilões) - Parte I - O CORINGA (The Joker)


Como já é sabido por muitos, o Coringa teve sua primeira aparição na clássica Batman no 1, de 1940. O vilão foi criado principalmente por Jerry Robinson, com Bill Finger ajudando no roteiro, e Bob Kane ficou com os loiros. Batman já havia enfrentado arqui-inimigos antes, como Dr. Morte e Hugo Strange, mas o Coringa quando surgiu roubou a cena e se tornou o vilão mais recorrente com quem o Cavaleiro das Trevas, auxiliado por seu sidekick Robin, travava embates na Era de Ouro. O vilão era um estouro, e a molecada ficou fascinada pelo maníaco de pele branca sorridente, visualmente inspirado no ator Conrad Veidt, que interpretou o protagonista da adaptação cinematográfica de O homem que ri, clássica obra de Vitor Hugo. Outra grande influência foram os vilões de Dick Tracy, criados por Chester Gold, que eram bem caricatos. Boa parte dos vilões do Batman teve uma grande inspiração do estilo caricato de Gold.


Com o tempo, o Coringa deixou de ser um vilão assassino para se tornar mais galhofa e pueril. É importante lembrar que, nessa época, quadrinhos eram vistos como uma mídia exclusivamente para crianças, e o Comic Code Authority foi devastador, suprimindo quase todas as referências à violência e a crimes violentos nas HQs. Essa foi a época do Batman de Dick Sprang, em que as histórias eram bem infantilizadas e simplórias, típicas da Era de Prata.


No entanto, creio que ninguém previu o fenômeno que seria a primeira Batmania, propiciada pelo sucesso da série de TV dos anos 60, com Adam West e Burt Ward. Apesar da galhofa, a série foi basicamente a responsável por Batman ser um grande “ativo” da cultura pop, digamos assim. Alguns idiotas criticam o Coringa de Cesar Romero, mas a verdade é que, apesar de toda a comédia pastelão, ele é e versão interpretada por um ator mais fiel do personagem daquela época, é preciso frisar. O Coringa de Romero é puro Dick Sprang, e nenhum outro ator que encarnou o vilão conseguiu ter mais fidelidade à versão comparativa de sua época.
Dando um salto no tempo, temos enfim a volta do Coringa assassino, em Batman no 273, de 1973. Nessa história, escrita por Denny o’Neil e desenhada por Neal Adams, o Palhaço do Crime quer acertar a conta com antigos capangas, os assassinando um a um, e Batman tenta impedi-lo. O Coringa de o’Neil e Adams é o Coringa homicida da Era de Ouro, mas com um verniz de contemporaneidade. Ademais, ele se sente melhor em sua loucura.

Não demorou muito para a DC ter uma ideia inusitada e estabelecer que o vilão deveria ter seu próprio título, algo ousado para a época, pois era incomum vilões protagonizarem sua própria revista. Mas, se até Lois Lane e Jimmy Olsen tinham suas revistas, por que o Coringa não poderia? Porém, a aceitação dos leitores não foi muito boa, pois devem ter estranhado um vilão ser o centro das histórias. Coringa era legal como vilão do Batman e todo mundo gostava de ver suas atrocidades, mas vê-lo como protagonista enfrentando outros vilões e alguns heróis como o Arqueiro Verde, que apareciam na revista, era meio awkward, e o título logo foi cancelado.


Durante a década seguinte, o Palhaço do Crime seguiu sempre presente nas HQs do Batman, nas versões de Jim Aparo, Dick Giordano, Marshall Rogers e outros. Não obstante, em 1986 o artista em ascensão Frank Miller propôs um projeto extremamente inovador e que mudou a cara dos comics até aquela época, a minissérie O Cavaleiro das Trevas. Nessa HQ, que mostrava um Batman já chegando à terceira idade redivivo no combate ao crime, com métodos muito contundentes e, alguns diriam, extremos, o Coringa teve uma encarnação como nunca vista até então. Miller deu para um vilão um ar meio andrógino e até mesmo sensual, com forte inspiração em seu aspecto físico de David Bowie. Ele até em um “namorado”, o travesti nazista Bruno. Esse Coringa também teve um upgrade em escalada de atrocidade, uma vez que no quadrinho ele é basicamente um genocida. Miller também aproveitou para fazer uma crítica à sociedade e a mídia americana, que já mostravam sinais de serem bunda-mole, ao passarem a mão na cabeça do Coringa. Essa versão do vilão também é adepta do “coitadismo” e se aproveita de psiquiatras complacentes.


Um pouco depois, em 1988, na HQ A Piada Mortal, de Alan Moore e Brian Bolland, o Coringa atinge mais um grau na sua escalada de loucura e atrocidades. O Coringa de O Cavaleiro das Trevas já tinha sido apresentado como a versão mais hardcore do personagem, mas o de A Piada Mortal tem a particularidade de ser o canônico. A história dos bastidores que conheço é que originalmente essa HQ não tinha a intenção de ser canônica, mas o editor à época gostou tanto da história que decidiu que ela deveria ser a origem definitiva do Coringa, no pós Crise nas Infinitas Terras. Moore descreve o passado do vilão em flashback, em que, por conta da tragédia de sua vida, como marido e futuro pai fracassado, acaba colaborando com uma gangue e assumindo a identidade do Capuz Vermelho. Ao mergulhar no tanque de dejetos químicos, ressuscita como o insano Palhaço de Crime. Decidido a provar que qualquer um pode enlouquecer depois de “um dia ruim”, ele invade a casa do comissário Gordon e atira em Barbara Gordon, partindo sua espinha. O vilão então sequestra Gordon, o leva para seu circo com sua trupe de freaks, e o tortura psicologicamente, com fotos de Barbara nua. Se, por um lado, o destino do Coringa antes de enlouquecer parece inexorável, por outro, na HQ o próprio Batman dá uma lição de moral no vilão, dizendo que “não é porque alguém levou um tombo que deve ficar deitado no chão”, visto que a tentativa de tornar Gordon insano não funcionou.

Nesse ponto, cabe um parêntesis, que é a questão se o Coringa estuprou ou não Barbara nessa HQ. Minha opinião é bem clara, se considerarmos que é uma história do Batman, da DC, ele não estuprou. Porém, se estabelecermos que essa é uma história de Alan Moore, é bem possível que ele tenha estuprado. Essa polêmica atingiu um clímax ridículo com a capa censurada da Batgirl, que fazia alusão à Piada Mortal. Houve tanto esperneio para que a capa fosse suprimida que a DC atendeu os reclamões; melhor dizendo, as reclamonas, porque a maior parte era formada por meninas, adolescentes e jovens adultas, leitoras da revista da Batgirl. Mas, provavelmente, se essa não fosse uma revista da Batgirl, mas fosse do Batman, que tem uma variedade de leitores bem maior, muitos homens adultos, o esperneio seria o mesmo.


Vale dizer que na HQ Coringa, de Brian Azzarello e Lee Bermejo, que mostra uma versão mais extrema do vilão, visualmente inspirado no Coringa de Heath Ledger, o Coringa realmente estupra com a ex-mulher de um capanga que pisou na bola com ele. Na época, não me lembro se teve esperneio. Hoje, provavelmente teria. Não me incomoda muito o Coringa estuprar porque ele é um vilão e, no meu entender, vilões podem estuprar, entre outras atrocidades; afinal de contas, são caras maus, não? Mas esse é um ponto que incomoda mais algumas pessoas. É como se o Coringa passasse do limite. No entanto, espancar um adolescente com um pé de cabra, como ele fez com o Robin Jason Todd, em Morte em Família, tá tranquilo, tá favorável.



No final dos anos 80 e anos 90, o Coringa já estava em um nível até consideravelmente alto na escalada de atrocidades, além de ter aleijado Barbara e assassinado Jason, outro ato de crueldade digno de nota foi ele ter assassinado a mulher de Gordon, Sarah Essen, com um tiro na cara, durante a saga Terra de Ninguém. No entanto, a DC com suas cagadas desfez as atrocidades do vilão. Jason ressuscita como Capuz Vermelho e Barbara volta a andar e a assumir a identidade de Batgirl.


Mas as burradas da DC com relação ao Coringa só se intensificaram nos últimos anos. Na fase de Grant Morrison, o vilão leva um tiro na cara de um policial disfarçado como Batman e sofre uma metamorfose, se tornando um maluco sem camisa e com suspensórios, com uma língua saliente. Nos Novos 52, arrancaram sua face, e depois ele prega a pele do rosto, ficando com um visual gore e bizarro. E o Coringa nessa fase do Batman escrita por Tom King parece um autista.



Falando um pouco do Coringa em outras mídias, uma vez que esse é o que importa para o povão. O dos quadrinhos só interessa aos fanboys. O Coringa de Jack Nicholson foi muito importante para uma nova compreensão do vilão perante o público da época. Essa versão não é tão fiel aos quadrinhos. Basicamente, Nicholson, que é um ator egocêntrico, porém formidável, botou sua personalidade no vilão. Porém, ele tem certa influência do Coringa da fase do Batman escrita por Steve Englehart, visto que podemos substituir o chefão Carl Grisson por Rupert Thorne e Vicky Vale por Silver St. Claire.


O Coringa de Heath Ledger é uma versão muito particular do vilão, que se adéqua ao estilo realista de Christopher Nolan. Seus filmes têm, até certo ponto, vergonha de se assumir como filmes de quadrinhos. Não me entendam mal; o Batman do Nolan é meu preferido nas versões para o cinema, mas essa é a realidade. Mal comparando, Richard Donner também buscou verossimilhança em seu Superman de 1978, para não se prender na fantasia dos quadrinhos. No entanto, Nolan vai ainda mais fundo na verossimilhança. Apesar de ser pretensamente mais realista, há muito da cosmologia do Coringa dos quadrinhos no de Heath Ledger, que, aliada à interpretação soberba de Ledger, proporciona um Coringa realmente inesquecível.


Não vou nem comentar o Coringa de Jared Leto. Ele é ridículo, mas teve certa influência estética do Coringa do Morrison e do de All Star Batman, de Frank Miller e Jim Lee.


E o Coringa de Joaquim Phoenix? Bom, esse aí merece um grande parêntesis. Na verdade, não vou me aprofundar muito, pois há muitos aspectos a serem comentados sobre o filme Coringa, e este artigo iria ficar maior do que já é. Na minha concepção, ele não tem muita semelhança com o personagem dos quadrinhos; é um Coringa completamente diferente, e é meio problemático, pois, no fim das contas, ele não é um vilão. De fato, está mais para anti-herói do que vilão. Ele pratica atos de crueldade e assassina pessoas, mas, em sua maioria, são pessoas odiosas. É criado um laço de empatia entre Arthur Fleck e os espectadores; laço de empatia que provavelmente seria rompido se ele assassinasse alguém que os espectadores se importariam, como aquele anão ou a vizinha e a filha. A realidade em que Arthur Fleck vive é temporalmente dissociada. São os anos 70, mas há clara referência ao Ocuppy Wall Street no filme. Thomas Wayne é tipo uma versão de Donald Trump, indo de encontro à personalidade benevolente de Thomas nos quadrinhos. O filme foi criticado pela esquerda, mas ele é bem crítico ao capitalismo e expõe suas mazelas. É até bem pró-estatal, visto que Fleck é vítima de um estado falido. Não conheço nenhum Ancap que goste dessa película. No entanto, ele é feliz quanto a trazer um “vilão” para o primeiro plano. É nítido que vivemos em uma sociedade com crise de valores, e um filme como Coringa se destacar é sinal disso, a despeito de seus méritos técnicos e da atuação excepcional de Phoenix, que, a bem da verdade, talvez seja maior que o próprio filme. Apesar de ter pouca fidelidade aos quadrinhos, ou quase nenhuma, o fanboy mais atento encontrará  referências de algumas histórias com o Coringa, como A Piada MortalO Cavaleiro das TrevasCoringa de Azzarello e Bermejo e De Volta à Sanidade.

Outro fenômeno interessante desse filme é que, de repente, todo mundo virou entendedor de Coringa. Se fossem só os críticos de cinema, vá lá, mas o que vi de gente falando merda sobre o personagem não tá no gibi (literalmente).




Uma versão do Coringa que ainda merece ser mencionada é a da série animada de Bruce Timm. Não há muito o que dizer sobre essa versão do vilão. Na verdade, até há, mas não desejo me aprofundar muito, porque o artigo iria ficar muito longo. Mas ele é basicamente o Coringa dos quadrinhos, mas com classificação indicativa. Você sabe que o Coringa da série animada pode matar, mas ele não vai. Há a ameaça, sim, mas nunca irá se concretizar.


Enfim, ainda destaco um último ponto que é a assimilação do Coringa pela cultura do funk, particularmente no Brasil. Quando andava pela rodoviária de Brasília, sempre via uns moleques com a camisa do vilão, e tem muito da versão do Leto. Arlequina é a tchutchuca do Coringa. 


Chegamos então em um ponto que o Coringa é, sim, um dos maiores vilões agraciados pela cultura pop. Apesar de gostar muito do personagem, assumo que o destaque que ele tem hoje não deixa em parte de ser por conta da crise de valores que vivemos, em que um vilão se destaca por não ter os escrúpulos que o herói deveria ter. Esse artigo rendeu mais porque há muito a se falar sobre o personagem. No próximo artigo, pretendo abordar a “mulé” do Coringa, a Arlequina, e a Hera Venenosa, mas com certeza será mais curto porque não há tanta coisa a se falar sobre elas. Eu até pretendia também incluir a Arlequina neste artigo, mas ele iria ficar mais extenso do que já é e preferi só me focar no Palhação mesmo.


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